terça-feira, 17 de junho de 2008

GAROTA MACABRA

Com alguns minutos de atraso, eu desci pelas escadarias do metrô. Era o ultimo da noite. Mais parecia um vulto mal assombrado com a camisa do Anthrax do que um simples passageiro do metrô. Diego já me esperava há um tempo, já se acostumou com essa cena. Sempre me atraso, por mais que eu tente ser pontual. Não sou nada britânico. A distância também não ajudava muito. Era o último fim de semana do ano, o que fazia a noitada ser mais especial. Pegamos o metrô e descemos em Botafogo. Lá a gente encontraria mais alguns amigos e a festa estaria completa. Afinal, era o ultimo fim de semana do ano. A próxima farra, só no reveillon, em Copacabana.

A boate tinha um formato bem curioso, pois misturava características modernas dentro de uma casa antiga, daquelas típicas do Rio Antigo, além de ter vários ambientes. Um pra conversar, outro pra jogos e vídeo clipes e no segundo andar, a pista de dança vermelha e cheia de fumaça de cigarro. O lugar não estava muito cheio, mas dava pra se divertir e pelo visto logo chegaria mais gente. Lá encontramos mais dois amigos que já estavam nos esperando na porta e entramos na boate, ao som de White Stripes.

Depois de algumas horas, muitas cervejas, maços de cigarro e uns baseados, eis que surge naquele ambiente frio, enfumaçado e escuro, uma garota de cabelos pretos, pele clara, olhos puxados (parecia uma japonesa), baixinha e sorridente. Sua blusa era sugestiva: era preta, com o símbolo dos Rolling Stones, aquela boca vermelha, com a língua pra fora. Chamava a atenção de todos. Seu magnetismo era forte.

Nós então éramos quatro babacas enfileirados com os copos e cigarros na mão assistindo aquela cena: uma série de caras abordava a tal garota e saíam como se tivessem deixando um guichê pra trás. Desapontados. Cabisbaixos. A cena era muito divertida, engraçada. Para os candidatos, uma cena sem graça. Já chegava o momento (isso era o que eu sentia, mas ninguém declarava) em que um dos quatro teria que chegar junto e quem sabe ou tomar o caminho da roça como os outros, ou ser o felizardo da noite.

Então, nós trocamos olhares do tipo “quem vai chegar junto primeiro?” até que eu, logo o mais devagar e mais tímido do grupo, vira e diz “deixa que eu vou lá”. (Era a pinga, a velha tática dos tímidos) Todos estranharam a minha atitude, mas eu tava tão decidido que ninguém disse nada, mas provavelmente deve ter pensado: “lá vai mais um levar um fora dessa guria marrenta”.

Eu me aproximei e comecei a conversar com a garota. Ela se chamava Marina, morava no Leme, tinha 21 anos e estudava cinema em Niterói. Diferente do que eu imaginava, ela estava bastante receptiva e sorridente. Depois de alguns minutos de conversa, um beijo. Enquanto isso, os outros estranharam ver logo eu, que fica num empate sem gols na maioria das noitadas, com aquela morena que parecia ser “a difícil” da noite. Não demorou muito pra Marina convidar pra esticarmos a noite no seu apartamento ao invés de ficar ali em Botafogo.

Saí da boate com uma em cada braço. A outra era a irmã que dividia o apartamento com Marina. No início, pensei que ela estragaria a noite, depois pensei que poderia rolar um ménage (eu e meus delírios repletos de sacanagem sem culpa), mas na realidade ela estava completamente bêbada e precisava de uma cama e de uma ducha com urgência.

Pegamos um táxi. Não levamos muitos minutos até o Leme. O taxista era a cara do Paulo Francis, o que arrancava em mim algumas risadas tímidas. Marina passou a rir depois que eu mostrei a ela o sósia dirigindo o táxi. Ela não fez cerimônia e apalpou meu pau, dando sinal de que rolaria algo mais essa noite. Eu estava realmente curtindo a noite completa. A ultima noitada do ano eu estava fechando com chave de ouro: farra com os amigos primeiro, e na cama com uma guria que conhecera na mesma noite depois.

Chegando no apartamento, a irmã foi direto a nocaute. Se o mundo estivesse acabando, acho que ela não acordaria nem por um decreto. Perfeito. Pois assim, poderia trepar com Marina em paz. Mas os eventos surreais não pararam por aí. O apê dela parecia uma filial da SUIPA! Tinha cinco cachorros e seis gatos. Ta certo que eu senti um cheiro forte de bicho quando entrei lá, mas o tesão pra trepar e as várias doses de álcool serviram como sedativo nasal.

Lavei o rosto na pia da área de serviço e quando entrei no quarto lá estava a garota, branca como a neve, de lingerie preta, pra combinar com o cabelo – pensei. A garota parecia insaciável. Transamos. Ela era muito boa por cima. Fazia tempos que num encontrava uma guria que fizesse bem a minha posição predileta. Lindo par de seios. Grandes. Rosados. Suculentos. Depois de transas, delírios, conversas e cigarros, dormimos feito crianças. Eu precisava voltar pra casa. Precisava mesmo?

Quando fui ao banheiro na manhã seguinte, pra tomar uma ducha e recuperar as energias, presenciei um lance engraçado: o chão do “toalete” era forrado de jornal! Ou seja, o banheiro para os “humanos” era o mesmo para a bicharada! Eu não estava chapado a ponto de criar essas imagens na cabeça! Que horror! Na mesma hora perguntei: que porra é essa? Recuperado, desci a rua e peguei o bom e velho 455.

Dias depois era ano novo. Diferente do que eu cogitei, não me encontrei com Marina. Passei o ano novo enchendo o pote com meus amigos. Naquela multidão de Copacabana seria impossível encontrá-la. Eu até liguei, mas ela não pode se encontrar comigo. Comecei aquele ano sem “boas entradas”, porém vi o mundo girar...

Depois desse início rápido e libidinoso, as coisas começaram a se encaixar no seu devido lugar, ou melhor, nos lugares errados. De forma estranha. Os acontecimentos aos poucos sinalizavam, avisavam, mas eu não dava a mínima. Inicio de relacionamento tudo são rosas, os casais não brigam, são eternos enamorados, um romantismo beirando a perfeição. E o tesão a flor da pele. É uma fase em que todos nós estamos parcialmente cegos. Eu também. E nessa fase não percebia muito os aspectos mais estranhos de Marina. Mas também não estava amando a garota. Estava mesmo bastante carente, mas não tão apaixonado. Excitação, isso sobrava!

Não demorou muito pros sinais “estranhos” aparecerem na minha frente. Marina tinha uma filha, mas morava em Fortaleza, do outro lado do país. Ela disse que a filha era criada pelo pai. Eu estranhava: mães não abandonam filhos pelo mundo. A frieza de Marina aos poucos me incomodava. Porque não era só isso, era realmente uma garota fria e materialista. Só falava de grana. Raramente falava da família, mas quando acontecia, era só grana, grana, grana, compras, compras... A coisa só mudava de figura quando a gente transava.

Eu já dava sinais de irritação. Onde se viu marcar horário pra se encontrar com a “namorada”? Sim, no momento já estávamos com três meses de namoro, quase quatro. E isso me deixava puto mesmo. Era rotina. Eu ligava pra Marina cheio de carinhos, ela me atendia bem seca. Perguntava quando podíamos nos encontrar, ela falava como se fosse uma puta arranjando espaço na agenda. Fora quando a gente se encontrava ela num era capaz de dar nem um “oi”. Parecia uma colega distante. O que me consolava eram as noites de sexo, Lucky Strike e cervejas importadas no seu apartamento.

Uma vez, no meu trabalho, estava conversando com uma colega, ela devia ter uns 50 anos e parecia àquelas tias coroas que distribuíam conselhos como souvenir. A gente sempre bebia depois do expediente. Era uma baita guerreira, gente boa, cheia de experiência. Ela tinha um sotaque baiano bem divertido e depois de contar o meu resumo da ópera, ela disparou a queima roupa: “porra cara, pra mim quem faz essa de marcar hora pra ver namorado pra mim é rapariga da porra! (porra pra ela parecia vírgula e eu adorava isso) Puta mesmo! Cai fora que o barco ta afundando rapaz. Espero que saiba nadar. Essa num vale meio quilo!” Entendi o recado, repleto de metáforas e afins. Mas num deixava de ser tão direto como um soco do Acelino Freitas. Precisava mesmo ouvir isso.

Esse relacionamento já se sustentava à base de sexo e mais nada. Mas nem isso tava dando mais vazão. Já estava ficando de saco cheio daquela maneira fria e calculista. Pessoas bem próximas reparavam e me alertavam a respeito desse jeito estranho dela. Aliás, eram pouquíssimas pessoas que sabiam desse relacionamento. Poucas mesmo. Ela se esquivava sempre. Algo precisava ser feito. Precisava de ares novos. Estava puto ao extremo. Juntei meus trapos e me mandei pra São Paulo sem ela saber. Liguei o foda-se!

Lá, fiquei na casa de um amigo meu, punk. Pablo era um puta amigo, sempre ficava na casa dele quando colava em Sampa. Era um final de semana que eu não fazia há tempos. Depois de me instalar na casa do cara, era hora de sair. Pablo me deu a idéia de aparecer num barzinho na Vila Madalena, um bairro bem legal lá na terra da garoa. Pegamos o metrô e rumamos para a boemia da paulicéia.

O local era bastante agradável e parecia bastante com aquele que encontrei Marina pela primeira vez. Mesmo assim, isso não veio muito a minha cabeça. Fiquei mais com a impressão da semelhança dos locais do que com a imagem da garota. Depois de umas rodadas de cerveja, eis que surge uma loira, alta, de traços germânicos, no meio do bar. O filme parecia se repetir.

Trocamos olhares e como eu já estava bem alto, estava com coragem suficiente para chegar naquela guria germânica. Seu nome era Patrícia. Era de Santa Catarina, a Alemanha brasileira. Era alta e corpulenta. Simpática e acessível. Saímos para tomar uns drinques e bater papo.

Tínhamos muitas afinidades: sulista, como meus pais, morava em São Paulo há quase um ano, trabalhava e estudava. Ela se interessou mais quando disse que era carioca, apesar das raízes fincadas lá no sul do país. Depois de muita conversa e “dancefloor”, voltamos a mais rodadas de cerveja. Estávamos todos alterados e felizes. E finalmente beijei Patrícia. (estava rolando Ramones nessa hora! Foi bem legal!) Mas foi mais pela pressão psicológica da sua irmã. Já estava fatigado, pois era uma mulher difícil. Depois disso, o que seguiu foi uma série de viagens a São Paulo “á lazer”.

Voltei ao Rio decidido a acabar o relacionamento com a garota macabra. Esse foi o apelido dado á ela por um grande amigo meu que inclusive estava lá no momento em que a conheci. E fazia realmente sentido o apelido. Fria, maquiavélica, sombria, mercenária, estranha, negativa, carregada. Macabra porra!

Na primeira vez que eu a encontrei – ela com uma minissaia bem curta, toda decotada, realmente um tesão -, depois dessa viagem, o clima já estava mais do que estranho, mas mesmo assim, teve espaço para a transa habitual. Marina de calcinha preta e camisa do Iron Maiden (alias, a minha camisa sumida e surrada do Maiden!) de pé depois da nossa transa preparando algo pra comer era uma cena muito bonita de se ver. Uma intimidade que não tinha já fazia algum tempo. Eu realmente gostava de vê-la desfilando pela casa daquele jeito: a menina macabra andando pela casa como se nada tivesse rolado antes. Era uma ilha de tranqüilidade singela em meio a um oceano turbulento e nebuloso.

Depois desta cena, conversamos e aos poucos sentíamos que o relacionamento caminhava para o final. Ela sentiu que eu estava estranho. Ela mudava o assunto em segundos. Passava a falar mal do ex-marido e daí desatinava a falar de finanças. Não ligava pra filha. Não ligava pra porra nenhuma. Estava agressiva e arredia. Seu jeito sombrio às vezes me assustava.

Eu me afastava dela cada vez mais. De repente, deixava de sair do subúrbio até as boates da zona sul, para pegar os ônibus em direção a São Paulo. O astral com Patrícia era outro. Era como se eu enxergasse a luz depois de um tempo nas trevas. Atenciosa, meiga, carinhosa, linda. Era exatamente o oposto da “macabra”. E aos poucos vislumbrava, lá no fundo, um futuro com aquele anjo loiro de sotaque sulista.

Voltei ao Rio e ainda tive compaixão de emprestar uma grana pra garota macabra. (esse apelido desde então passou a ser rotineiro, a ponto de não me lembrar do seu verdadeiro nome) Dei um ponto final na historia. Fui até a casa da guria e disse tudo o que aconteceu. Ela ficou cabisbaixa e jamais vai sair da minha mente a imagem da garota macabra sentada ao lado na cama, triste, aquela brancura toda contrastando com a escuridão do cabelo, que eu já associava ao seu jeito de ser. Senti uma pontada, uma agulha fria. “Me ajuda!”, era o que dizia. Virei imediatamente pra ela. Estava sentada ao meu lado naquela cama que tantas vezes fomos alegres, escondemos o sol com a peneira. Mas desta vez estava muito cabisbaixa, seus cabelos cobriam a sua face, e suas mãos estavam cerradas ao seu lado, como se tivesse se segurando. Era como se naquele silencio mórbido, ela tivesse pedindo por isso. Ela sentia a minha falta. Será? Eu trouxe uma fresta de luz naquela vida atormentada. Mas que já me atormentava. Era hora de fechar mais uma página.

Voltei a São Paulo mais algumas vezes. Acho que foram umas sete vezes ao todo. Depois o romance também desandou. Patrícia estava mais comodista. Relutava para vir ao Rio. Aos poucos, fui me afastando da idéia de manter algo mais sério. A distância já estava atrapalhando. E foi melhor assim, pois a trama já estava ficando cada vez mais envolvente. Não queria mais torrar a paciência. Desta, eu me afastei gradualmente. Era bem mais fácil. E fechei mais outra página.

Meses depois me encontrei com a garota macabra duas vezes, mas em épocas bem distintas. Da primeira, me esbarrei com ela numa boate em Botafogo. Cobrei a grana que ela me devia. Ela me enrolou, mas já tava de saco cheio. Estava mais sombria e chapada do que nunca. Carregada. Negativa. Dava arrepios.

Muito tempo depois, voltei ao apartamento dela no Leme. Parecia o fim do mundo. Havia mais de vinte bichos espalhados por aquele apartamento que era bem pequeno. Cheiro insuportável, uma sujeira só. A irmã abandonou o barco e voltou para Fortaleza. “La Macabra” continuava bonita, porém decadente, algo que ela sempre foi mesmo. Conversamos amenidades frívolas. Passar o tempo mesmo. Estava mais do que estampado a vontade dela em reviver os velhos tempos, as velhas transas. Mas quem vive de passado é museu.

Falei que precisava descer, comprar cigarros (Mentira). Já me sentia angustiado demais naquele apartamento. Não agüentava mais aquela cena tão terrível. Desci e peguei o primeiro ônibus pra casa. Enquanto pensava nos novos rumos que eu almejava pra minha vida, pensei na angustia e na aflição de Marina. E mais uma vez me veio àquela sensação estranha, aquela telepatia mórbida, mas que nunca falhava: desta vez, ela estava ao mesmo tempo puta da vida e extremamente decepcionada, porque dispensara vários programas só para me receber. O último fio de esperança. Esperava alguma satisfação depois de meses na nova vida de garota de programa. No ano seguinte, soube que Marina veio a falecer vitima de overdose.

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